03 agosto 2006

Da primeira das "Cartas a um jovem poeta"...

The Young Poet, by Arthur Hughes
De Rainer Maria Rilke

Paris, 17 de fevereiro de 1903

Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de serem todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos susceptíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte -- seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efémera.

[...] Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redactor. Pois bem -- usando da licença que me deu de aconselhá-lo -- peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar -- ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo; pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: Sou mesmo forçado a escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples sou, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade.

[...] Se a própria existência quotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações?

[...] Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo. Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

[...]

[Trad. de Cecília Meireles]