06 novembro 2007

A Cena do Ódio

Almada Negreiros: auto-retratoPor José d'Almada-Negreiros
Poeta Sensacionista
E Narciso do Egipto

(Separata da revista CONTEMPORÂNEA, 1915; colaboração inédita no n.º 3 da revista ORPHEU)

A Álvaro de Campos

(Excertos de um poema desbaratado que foi escrito durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de Maio de 1915).

Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a arder o Meu cantar!
Sou Vermelho-Niagára dos sexos escancarados nos chicotes dos cossacos!
Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula!
Sou Génio de Zaratustra em Taças de Maré-Alta!
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!

Ladram-Me a Vida por vivê-La
e só me deram Uma!
Hão-de lati-La por sina!
agora quero vivê-La!
Hei-de Poeta cantá-La em Gala sonora e dina!
Hei-de Gloria desanuviá-La!
Hei-de Guindaste içá-La Esfinge
da Vala comum onde Me querem rir!
Hei-de trovão-clarim levá-La Luz
ás Almas-Noites do Jardim das Lágrimas!
Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia
nos Funerais de Mim!
Hei-de Alfange-Mahoma
cantar Sodoma na Voz de Nero!
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido...,
hei-de ser Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,
cantar Átila, cantar Nero, cantar Eu!

Sou trono de Abandono, mal-fadado,
nas iras dos bárbaros, meus Avós.
Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina
gemidos vencidos de fracos,
ruídos famintos de saque,
ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga!
Sou ruínas rasas, inocentes
como as azas de rapinas afogadas.
Sou relíquias de mártires impotentes
sequestradas em antros do Vicio e da Virtude.
Sou clausura de Santa professa,
Mãe exilada do Mal,
Hóstia d'Angústia no Claustro,
freira demente e donzela,
virtude sozinha da cela
em penitencia do sexo!
Sou rasto espezinhado d'Invasores
que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.
Sou a Raiva atávica dos Távoras,
o sangue bastardo de Nero,
o ódio do ultimo instante
do condenado inocente!
A podenga do Limbo mordeu raivosa
as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo...
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!

E eu vivo aqui desterrado e Job
da Vida-gémea d'Eu ser feliz!
E eu vivo aqui sepultado vivo
na Verdade de nunca ser Eu!
Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio,
orfão da Virgem do meu sentir.

(Pesam quilos no Meu querer
as salas-de-espera de Mim.
Tu chegas sempre primeiro...
Eu volto sempre amanhã...
Agora vou esperar que morras.
Mas tu és tantos que não morres...
Vou deixar d'esp'rar que morras
-- Vou deixar d'esp'rar por Mim?!...)

Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!

Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta!
Hei-de morder-te a ponta do rabo
e pôr-te as mãos no chão, no seu lugar!
Aí! Saltímbanco-bando de bandoleiros nefastos!
Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!
Aí! Espelho-aleijão do Sentimento,
macaco-intruja do Alma-realejo!
Aí! maquerelle da Ignorância!
Silenceur do Génio-Tempestade!
Spleen da Indigestão!
Aí! meia-tigela, travão das Ascensões!
Aí! povo judeu dos Cristos mais que Cristo!
Ó burguesia! ó ideal com i pequeno!
Ó ideal rocócó dos Mendes e Possidónios!
Ó cofre d'indigentes
cuja personalidade é a moral de todos!
Ó geral da mediocridade!
Ó claque ignóbil do vulgar, protagonista do normal!
Ó catitismo das lindezas d'estalo!
Aí! lucro do fácil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Aí! dique impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d'impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Aí! Zero-barómetro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Aí! plebeísmo aristocratizado no preço do panamá!
erudição de calça de xadrez!
competência de relógio d'oiro
e corrente com suores do Brasil
e berloques de cornos de búfalo!

Zut! bruto-parvo-nada
que Me roubaste tudo:
'té Me roubaste a Vida
e não Me deixaste nada!
nem Me deixaste a Morte!
Zut! poeira-pingo-micróbio
que gemes pequeníssimo gemidos gigantes,
grávido de uma dor profeta colossal!
Zut! elefante-berloque parasita do não presta!
Zut! bugiganga-celulóide-bagatela!
Zut! besta!
Zut! bácoro!!
Zut! merda!!!

E tu, também, vieille-roche, castelo medieval
fechado por dentro das tuas ruínas!
Fiel epitáfio das crónicas aduladoras!
E tu também, ó sangue azul antigo
que já nasceste co'a biografia feita!
Ó pagem loiro das cortesias-avózinhas!
Ó pergaminho amarelo-múmia
das grandes galas brancas das paradas
e das vitórias dos torneios-lotarias
com donzelas-glórias!
Ó resto de ceptros, fumo de cinzas!
Ó lavas frias do vulcão pirotécnico
com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas!
Ó estilhaços heráldicos de vitrais
despegados lentamente sobre o tanque do silêncio!
Ó cedro secular
debruçado no muro da Quinta sobre a estrada
a estorvar o caminho da Mala-posta!

E vós também, ó Gentes de Pensamento,
ó Personalidades, ó Homens!
Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria,
Cristos vencidos por serem só Um!
E vós, ó Génios da Expressão,
e vós também, ó Génios sem Voz!
Ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias,
Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos!
Profetas clandestinos
do Naufrágio de Vossos Destinos!

E vos também, teóricos-irmãos-gémeos
do meu sentir internacional!
Ó escravos da Independência!

E tu também, Beleza Canalha
co'a sensibilidade manchada de vinho!
O lírio bravo da Floresta-Ardida
á meia-porta da tua Miseria!
Ó Fado da Má-Sina
com ilustrações a giz
e letra da Maldição!
Ó fera vadia das vielas açaimada na Lei!
O xaile e lenço a resguardar a tísica!
Ó franzinas do fanico
co'a sífilis ao colo por essas esquinas!
Ó nu d'aluguer
na meia-luz dos cortinados corridos!
Ó oratório da meretriz a mendigar gorjetas
pr'á sua Senhora da Boa-Sorte!
Ó gentes tatuadas do calão!
Ó carro vendado da Penitenciaria!

E tu também, ó Humilde, ó Simples!
enjaulados na vossa Ignorância!
Ó pé descalço a calejar o cérebro!
Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar!
Ó alguidar de açorda fria
na ceia-fadiga da dôr-candeia!
Ó esteiras duras pr'a dormir e fazer filhos!
Ó carretas da Voz do Operário
com gente de preto a pé e filarmónica atrás!
Ó campas rasas engrinaldadas,
com chapões de ferro e balões de vidro!
Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho!
Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade!
Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez!

Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!
Ó pampilho das Lezírias inundadas de Cidade!

E vós varinas que sabeis a sal
e que trazeis o Mar no vosso avental!

E vós também, ó moças da Província
que trazeis o verde dos campos
no vermelho das faces pintadas.

E tu também ó mau gosto
co'a saia de baixo a ver-se
e a falta d'educação!
Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos)
a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita!
Ó tédio do domingo com botas novas
e música n'Avenida!
Ó santa Virgindade
a garantir a falta de lindeza!
Ó bilhete postal ilustrado
com aparições de beijos ao lado!

Ó Arsenal-fadista de ganga azul e coco socialista!
Ó saídas pôr-do-sol das Fabricas d'Agonia!

E vós também, nojentos da Política
que explorais eleitos o Patriotismo!
Maquereaux da Pátria que vos pariu...

E vós também, pindéricos jornalistas
que fazeis cócegas e outras coisas
á opinião publica!

E tu também, roberto fardado:
Futrica-te espantalho engalonado,
apeia-te das patas de barro,
larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!
Espuma-te no chumbo da tua Valentia!
Agoniza-te Rilhafoles armado!
Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,
da ciência da matança!
Groom fardado da Negra,
pária da Velha!
Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!
Despe-te da farda,
desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu
que ficas desempregado!
Acouraça-te de Senso,
vomita de vez o morticínio,
enche o pote de raciocínio,
aprende a ler corações,
que ha muito mais que fazer
do que fazer revoluções!
Rebusca no seres selvagem,
no teu cofre do extermínio
o teu calibre máximo!
acaba de vez com este planeta,
faz-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
e esta gente distraída em guerras!)

Olha os que não são nada por te cantarem a ti!
tantos mundos!
tantos génios
que não fizeram nada,
que deixaram este mundo tal qual!
Olha os grandes o que são, estragados por ti!
E de que serve o livro e a ciência
se a experiência da vida
é que faz compreender a ciência e o livro?
Antes não ter ciências!
Antes não ter livros!

Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados,
anémicos, cancerosos e arseniados!
Larga a cidade!
Larga a infâmia das ruas e dos boulevards,
esse vai-vem cínico de bandidos mudos,
esse mexer esponjoso de carne viva,
esse ser-lesma nojento e macabro,
esses zigue-zagues de chicote auto-fustigante,
esse ar expirado e espiritista,
esse Inferno de Dante por cantar,
esse ruído de sol prostituído, impotente e velho,
esse silêncio pneumónico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!

Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!
-- Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também!
-- Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros, nem Inteligência!
E já houve Inteligência a mais: pode parar por aqui!
Depois põe-te a viver sem cabeça,
vê só o que os olhos virem,
cheira os cheiros da Terra,
come o que a Terra der,
bebe dos rios e dos mares,
-- põe-te na Natureza!

Mas tu nem vives, nem deixas viver os mais,
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!
Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio
novelo emaranhado da minha dor!
Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio
abismo descida de Eu não querer descer!
Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina!
Hei-de ser cigana da tua sina!
Hei-de ser a bruxa do teu remorso!
Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha
em águas-fortes de Goya
e no cavalo de Tróia
e nos poemas de Poe!
Hei-de feiticeira a galope na vassoira
largar-te os meus lagartos e a Peçonha!
Hei-de vara mágica encantar-te arte de ganir!
Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!
Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco
e depois na carne viva deitar fel,
e depois na carne viva semear vidros,
semear gumes,
lumes,
e tiros!
Hei-de gozar em ti as poses diabólicas
dos teatrais venenos trágicos da persa Zoroastro!
Hei-de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques,
e desfraldar-te nas canelas mirradas
o negro pendão dos piratas!
Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!
Hei-de bóia do Destino ser em brasa
e tu náufrago das galés sem horizontes verdes!

Ah que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a alma dos Bórgias a penar!